estilística

HL251 Estilística (2012/ii)

O objetivo da disciplina é ‘rever’ a teoria do romance de Mikhail Bakhtin.

É pensar sobre o romance ao mesmo tempo. O ‘romanesco’.

 

As aulas serão essencialmente expositivas, seguindo, no entanto o modelo de leitura e organização da produção do teórico proposto por Morson e Emerson (1990).

A leitura do livro-base (disponível em tradução) não será exigida dos alunos. Óbvio, no entanto que, dã, se der, melhor, né?

Os textos de Bakhtin também não serão lidos minuciosamente em sala (aguarde explicações para a primeira aula). Uma seleção da bibliografia vai apresentada aqui e é vigorosamente sugerido que essa leitura esteja nos planos dos alunos.

As avaliações serão dois ensaios, um de cunho mais teórico e outro de natureza mais prática, referente à análise da prosa literária.

 

Os fragmentos literários a serem eventualmente analisados em sala de aula serão sempre disponibilizados neste site. (O primeiro já vai aí grudado no pé do programa mesmo. Tio, cê já não leu isso com a gente em sala de aula? Desculpa. O exemplo é bom demais. Tio, cê não tem vergonha de ficar dando sempre exemplo de Joyce? Espere a justificativa na primeira aula. Tio, cê não tem vergonha de ficar dando exemplo das tuas próprias traduções? Eu já tenho digitalizado, sabe...)

 

 

Tópicos.

 

#. Apresentação da disciplina. Problemas da produção de Bakhtin. A questão da prosaica. A noção de estilo. Uma teoria literária que depende de uma teoria da linguagem. Bakhtin na teoria e Bakhtin na prática.

 

1. Conceitos Globais: Prosaística, Não-finalizabilidade, Diálogo.

2. A configuração de uma Carreira.

3. Metalinguística: O Diálogo da Autoria

4. Psicologia: a autoria de um Eu. (entrega do primeiro ensaio dia 06/12/12)

 

#. Comentário ao primeiro ensaio.

 

5. Polifonia: A autoria de um herói.

6. Teoria dos gêneros.

7. Prosaística e a linguagem do romance.

8. O Cronótopo.

9. O riso e o carnavalesco. (entrega do segundo ensaio dia 28/02/13)

 

#. Análise literária.

 

bibliografia mastigadinha

 

Textos incluídos nos livros da bibliografia.

 

BAKHTIN

"Peculiaridades do gênero, do enredo e da construção..." e “O discurso em Dostoiévski”, nos Problemas...

“O discurso no romance”, nas Questões...

“o autor e o herói”, na Estética...

“Apresentação do problema” e “Rabelais e a história do riso”, na Cultura popular...

 

VOLOCHÍNOV

“O discurso de outrem”, no Marxismo...

 

Outra coisa que bem pode ser útil é dar uma olhada na mastigada geral presente aqui: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8139/tde-31072007-145756/pt-br.php

 

 

bibliografia geral

 

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro e São Paulo, Forense universitária, 1997.

_______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São paulo, Unesp e Hucitec, 1988.

_______. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987.

_______. Art and answerability. Austin: University of Texas Press, 1990.

_______. The dialogic imagination. Austin: University of Texas Press, 2000.

_______. Problems of Dostoevsky’s poetics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999.

_______. Speech genres and other late essays. Austin: University of Texas Press, 1999.

_______ (VOLOCHÍNOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.

BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.

_______. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da UniCamp, 1997.

_______. Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.

_______. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: Edunicamp, 1996.

FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar, 2003.

MORSON, Gary Saul & EMERSON, Caryl. Mikhail Bakhtin: Creation of a Prosaics. Palo Alto: Stanford University Press, 1990.

_______. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. São Paulo: EdUSP, 2008.

_______. TEZZA, Cristovão; BRAIT, Elizabeth; RONCARI, Luiz; BERNARDI, Rosse Marie. Uma introdução a Bakhtin. Curitiba: Hatier, 1988.

_______. TEZZA, Cristovão & CASTRO, Gilberto de. Diálogos com Bakhtin. Curitiba: EdUFPR, 2001.

TEZZA, Cristovão. Entre a prosa e a poesia. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

 

 

O primeiro trabalho

Como eu disse, não é um trabalho de 'resposta certa'. Pouco me importa 'testar' vocês. Pouco me importa, também, verificar o domínio de bibliografia e tal. Seria hipócrita fazer deoutra maneira. As aulas, até aqui, fora, conforme anunciado, discussões (monovocais, é verdade) bem menos centradas na palavra de Bakhtin no que nas ideias e no que as ideias dele podem fazer a gente pensar. E é isso que eu quero.

Eu disse que essa disciplina ia dar o trabalho de uma disciplina de pós.

Mas aí não tem bibliografia de leitura obrigatória. Não tem 'tarefa' de aula pra aula. É só sentar e me ouvir...?

Pois é. O trabalho vem agora. E é o trabalho de pensar por conta própria.

O tema do trabalho, de uma vez

O tema do trabalho, de uma vez, seria o seguinte:

Um ensaio (mesmo: pessoal, não-necessariamente-acadêmico: intransferível, irrepetível, inalienável, como diria o velho MMB) que pense (veja bem, não é que 'responda') sobre as seguintes questões.

i. para que serve a literatura

ii. como ela relaciona um EU com o mundo; e um EU com o OUTRO

iii. como ela se coloca, quanto a essas questões, frente a outras formas de relação com a realidade

Pessoal. Pensar.

O prazo é de uma semana (6/12/12, conforme previsto no programa). A extensão é de no máximo 4 mil caracteres. O mínimo não existe.)

abração

caetano

Texto para embasar a discussão da aula de 29/12 

Todas as formas de discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre são concebidas como formas de "discurso citado". Ou seja, dentro da fala de um EU, insere-se a enunciação de um ELE ou mesmo de um TU. 

Sempre que um EU fala e responde pelas próprias palavras (ou seja, sempre que à pergunta "Quem foi que disse isso" ele pode responder dizendo "Fui eu") nós estamos FORA do campo do discurso citado.

É uma questão formal. Não de conteúdo.

"Em condições normais de temperatura e pressão, a água ferve a 100 graus."

"Eu gosto de doce de leite."

"Meu irmão é gordo."

"A minha mulher está preocupada."

"Henry James nasceu em nova york."

"Ali na rua, ontem de noite, tinha um maluco falando sozinho."

"O senhor leopold bloom mastigava com deleite as vísceras de vários animais."

Essas são TODAS frases de um discurso que a gente poderia chamar de "discurso de primeira ordem". Discurso de um EU. não cabe pensar nos termos DD, DI e DIL pra caracterizar nenhuma delas. Elas não pertencem ao universo do discurso citado, muito embora possam (e devam, em certos casos) entrar em hipóteses, constatações e suposições sobre estados mentais etc de outras "pessoas". 

Elas continuam, todas, sendo discurso de primeira ordem.

Assim, um narrador, mesmo um narrador em terceira pessoa, sempre emite as SUAS frases num discurso de primeira ordem. Num discurso de "primeira pessoa", como todo discurso (as terminologias "narrador em primeira pessoa" e "narrador em terceira pessoa" se referem aos USOS dessas pessoas verbais pelo narrador. Todo discurso é enunciado por uma primeira pessoa. Toda enunciação institui seu enunciador COMO primeira pessoa).

Não cabe qualificar as frases de narrador como DD, DI, DIL. Todos esses termos só podem passar a ser usados quando há legítima sobreposição de discursos; quando o narrador, por exemplo, inclui na sua fala a fala do outro. Quando diante da pergunta "Quem foi que disse isso", ele teria que responder "Foi ele".

E como isso se dá?

DISCURSO DIRETO

Aqui o que rola é a incorporação "direta" (tchanã!) da fala do outro. Ou seja, o discurso "citado" entra no discurso "citante" sem sofrer qualquer alteração.

Vamos usar de exemplo a frase "é difícil demais agradar esse chato", que um personagem poderia ter dito/pensado (sim, pra todos os efeitos, no mundo da ficção, e não na vida de fato, a fronteira entre disse e pensou é bem transponível. afinal, é pra isso que existem os vários graus de onisciência de narrador).

Em discurso direto, seria assim.

O senhor Laércio Flores entrou irritado na sala irritado com a conversa que teve com o gerente e disse:

- É difícil demais agradar esse chato

Com travessão e quebra de parágrafo, com aspas, entre travessões, dependendo da praxe editorial de cada tradição. O que importa é que a frase do senhor Flores é incorporada verbatim, sem alterações, e normalmente sua independência do contexto citante fica marcada graficamente. 

Ela fica "isolada"; não é "incorporada".

Além disso, repita-se, esse "discurso" que está sendo citado nem precisa ter sido "dito":

O senhor Laércio Flores se largou pesadamente na cadeira, irritado com a conversa que teve com o gerente, e pensou - é difícil demais agradar esse chato.

De um jeito ou de outro, há essa incorporação que não incorpora, que apenas acrescenta.

(nota de rodapé, esse verbo que introduz o discurso do outro, e que meio que caracteriza as formas mais claras do discurso citado, é chamado de verbum dicendi, verbo de dizer... disse, pensou, declarou, gritou, supôs, sussurrou, imaginou.... etc.)

DISCURSO INDIRETO

Aqui a frase é SINTATICAMENTE incorporada ao discurso citante. Não há quebra formal, como havia no caso do DD. O discurso citado passa a ser formalmente encampado pelo citante. 

Assim:

O Senhor Laércio Flores entrou na sala irritado com a conversa que teve com o gerente e disse que era difícil demais agradar aquele chato.

Veja que a semântica não muda. O senhor Flores continua dizendo a mesma coisa. O que muda é a forma de apresentação da palavra dele dentro da palavra do narrador. Aqui, o narrador é o único "enunciador", a única voz no texto, e ele "toma posse" da semântica do discurso do senhor Flores e a pronuncia dentro de uma frase, "formalmente" toda sua, que só tem um sujeito verbal etc... 

Veja que isso acarreta mudanças formais. O verbo (é/era) e o demonstrativo (esse/aquele) tiveram que ser mudados para encaixar a frase do senhor Flores no contexto, no aqui/agora, determinado pelo narrador. Pela voz citante. Essa é uma das maiores graças do DI.

Quando napoleão disse, "do alto dessas pirâmides 40 séculos nos contemplam", ele estava diante das pirâmides, e estava falando do seu momento presente. Se eu cito em discurso direto, como acabei de fazer, isso não é um problema.

Agora se eu quiser citar em DI, vou ter que adaptar a frase dele ao fato de que no meu discurso só há o meu aqui e o meu agora, e vai ter que ser, algo como "quando napoleão disse que do alto DAQUELAS pirâmides 40 séculos OS contenplAVAM...."

Formalmente, em português, o discurso indireto fica geralmente caracterizado por aquele QUE. Ao invés de disse/pensou etc, vai ser sempre disse que/pensou que etc...

(mas reserve, pro futuro, a informação de que, aqui, de alguma maneira, em algum grau, o narrador "chama para si" a responsabilidade pela caracterização do chefe como "chato".)

DISCURSO INDIRETO LIVRE

Se no DD o discurso citado mantinha autonomia semântica & formal;

Se no DI ele mantinha autonomia semântica, mas perdia a autonomia formal (as palavras citadas não são "exatamente" as que foram pronunciadas, afinal o senhor flores não disse "AQUELE chato");

No DIL o que acontece é que mesmo a autonomia semântica fica questionada, é de alguma maneira encampada pelo discurso citante...

Vamos por partes.

Formalmente, a defininição de DIL é incrivelmente simples. Ele é exatamente o que o nome diz. Um tipo de discurso CITADO, segundo a cartilha do discurso INDIRETO (ou seja, com todas aquelas acomodações de aqui/agora), mas LIVRE. 

Livre de quê? Livre do aparato do verbum dicendi.

O Senhor Laércio Flores entrou na sala irritado com a conversa que teve com o gerente. Era difícil demais agradar aquele chato.

E pronto. A frase do Flores está, formalmente, exatamente como estaria ("era"... "aquele") caso tivesse sido citada em DI. Mas não há verbum dicendi. Não há aparato de citação. A bem da verdade, formalmente nem parece discurso citado. A semântica & a forma foram encampadas. 

O que abre zilhões de possibilidades legais.

E a primeira delas é que aquela distinção entre "disse" e "pensou", por exemplo, deixa de ter lugar. 

Ora, se eu não uso o verbo que introduz a citação, eu nem preciso dizer, e nem preciso saber, se ele disse OU pensou.

Se a gente lembrar ainda que os verba dicendi (e o plural é esse mesmo) podem matizar a recepção também ("mentiu", "exagerou", "contemporizou"), esse é outro fator que vai pras cucuias no DIL.

Ou seja, o narrador, de um lado, se apropria totalmente da voz do personagem. Ela não tem mais autonomia formal/sintática. Não tem mais autonomia semântica. A semântica está "misturada".

Mas, de outro lado, o narrador abre mão de todo um campo de sobredeterminação que antes era seu. Ele como que vira parte do personagem, ou vice-versa, e de certa maneira perde características de superioridade ou no mínimo de posterioridade temporal. Ele não está de longe, descrevendo, está do lado, sentindo, dizendo, pensando junto com o personagem.

O que abre zilhões de possibilidades legais.

Uma delas é a de o narrador dar voz a coisas que nem voz tem. Foi o que o Graciliano Ramos quis fazer em Vidas Secas

Como imputar palavras a pessoas que são descritas como quase averbais? Ora, assim. 

Em DIL eu nem preciso supor que elas efetivamente "disseram" ou "pensaram" aquilo.

Ou seja. No DD eu tenho que supor que

1. A pessoa citada disse aquilo (conteúdo)

2. Ela disse daquela forma (material), ou seja, com aquelas palavras

Eu POSSO desmentir alguém que diga "Jânio Quadros declarou: 'Eu o fiz porque o quis'", com base no fato de que o que ele "disse" foi "Fi-lo porque qui-lo".

No DI eu suponho que

1. Ela disse aquilo

2. Não com essas palavras (há os ajustes de aqui-agora)

Eu NÃO POSSO desmentir alguém que diga "Jânio Quadros declarou que fez porque quis." Não faz parte do "contrato" da citação em DI a ideia de que as palavras citadas foram efetivamente enunciadas anteriormente. O contrato é basicamente semântico.

No DIL

1. Ela poderia ter dito aquilo

2. E poderia ser com aquelas palavras

Logo, posso falar de um paramécio: 

O paramécio estava nadando num lago infecto e disse: "É dura a vida dos protozoários!" 

Posso. Mas só numa estorinha infantil, numa fábula, numa parábola kafkiana etc. 

E o mesmo vale pra:

O paramécio estava nadando num lago infecto e disse que  a vida dos protozoários era dura. 

(E trocar esse "era dura" de lugar é super normal no DI. Afinal, o narrador, ao fazer os ajustes de aqui/agora já deixou claro que não assinou nenhum documento que declare que foram exatamente aquelas as palavras. O importante é não ofender a semântica.)

Mas veja que, estranhamente, eu encaro melhor, sem supor uma eventual microbiolalia, o texto:

O paramécio estava nadando num lago infecto. Era dura a vida dos protozoários.

Nada nele "declara" que o texto da segunda frase "é" do paramécio. Posso seguramente supor que se trata de uma avaliação do meu narrador. Mas aquele "era", essa importação da dêixis (que é o nome técnico daquele "aqui/agora") fica ali pra insinuar que a visão não é a do narrador. O narrador insinua, pela sua escolha de tempos verbais, demonstrativos, pessoas do verbo, que aquele discurso que, formalmente, é dele, pertence em algum nível semântico/psicológico ao personagem que ele está acompanhando.

Retirante nordestino

Paramécio

Camada de xisto no subsolo

Leopold bloom

Tanto faz.

É muito incrível.

Uma outra (das possibilidades bacanas no DIL) ocorre especialmente em textos em que o seu uso se torna constante. E decorre do fato de que há nele aquela sensação de quebra de fronteiras, de "mistura" entre vozes e consciências de narrador e personagem. O que pode rolar nesses textos é a prevalência de uma "incerteza" quanto à procedência das frases. É o narrador que está dizendo, ou ele está imputando ao personagem? Pense no texto abaixo.

O senhor Laércio Flores entrou nasala irritado com a conversa que teve com o chefe. Estava cansado.

Aquele "estava cansado", num texto cheio de DIL, pode ser lido como DIL. Mas não PRECISA. Daí o fato de a gente normalmente reservar o uso do termo DIL pra aqueles momentos em que não só a dêixis marca a possibilidade mas em que também há penetração de estilos, de vocabulários, em que o texto citado carrega uma "marca verbal pessoal", tipo

O senhor Laércio Flores entrou na sala irritado com a conversa que teve com o chefe. Estava mais cansado que advogado de político corrupto.

Num texto em que o narrador nunca tenha se dado a esses arroubos popularescos e em que o senhor Flores, por exemplo, goste desse tipo de expressão.

Deu pra entender?

Essa quebra-de-fronteira, registrada na palavra "livre", abriu também a possibilidade de se chamar o monólogo interior de "discurso direto livre", pelas mesmas razões. Mas isso é mais complicado.

Texto para análise (abertura do episódio dos 'Rochedos errantes' do Ulysses, de James Joyce, páginas 382-9 da edição canônica)

 

O superior, o reverendíssimo John Conmee, S. J., arrumava o relógio polido no bolso interno ao descer os degraus do presbitério. Cinco para as três. Dá tempo direitinho de caminhar até o Artane. Como era mesmo o nome daquele rapaz? Dignam, isso. Vere dignum et justum est. O irmão Swan era a pessoa indicada. A carta do senhor Cunningham. Isso. Fazer por ele, se possível. Um bom católico pragmático: útil em tempo de missões.

   Um marujo perneta, pendulando-se adiante aos trancos preguiçosos das muletas, rugiu algumas notas. Ele estacou em um tranco defronte ao convento das irmãs de caridade e estendeu um gorro pontudo de esmoler na direção do reverendíssimo John Conmee, S. J. O padre Conmee abençoou-o sob o sol pois sua bolsa continha, ele sabia, uma coroa de prata.

   O padre Conmee atravessou para a Mountjoy square. Ele pensou, mas não por muito tempo, em soldados e marujos, cujas pernas foram arrancadas por bolas de canhão, terminando os dias em alguma ala de indigentes, e nas palavras do cardeal Wolsey: Se eu tivesse servido meu Deus como servi meu rei ele não teria me abandonado em minha velhice. Caminhava pela sombrárvore de folhas solpiscantes e em sua direção veio a esposa do senhor David Sheehy, o deputado.

– Muito bem, muito bem mesmo, padre. E o senhor, padre?

   O padre Conmee estava mesmo maravilhosamente bem. Ele iria até Buxton provavelmente por causa das águas. E os meninos dela, estavam se dando bem no Belvedere? De verdade? O padre Conmee ficava mesmo muito feliz por ouvir isto. E o senhor Sheehy? Ainda em Londres. O parlamento ainda estava reunido, é claro que estava. Um tempo lindo, esse, delicioso mesmo. Sim, era muito provável que o padre Bernard Vaughan viesse novamente para pregar. Ah, sim: um enorme sucesso. Um homem realmente maravilhoso.

   O padre Conmee estava muito contente de ver a esposa do senhor David Sheehy, o deputado, com tão boa aparência e insistiu em ser lembrado ao senhor David Sheehy, o deputado. Sim, é lógico que ele iria aparecer.

– Boa tarde, senhora Sheehy.

   O padre Conmee tirou a cartola, ao se despedir, para as contas de azeviche atrás do xale dela, tintilantes sob o sol. E sorriu ainda outra vez ao se afastar. Ele tinha limpado os dentes, e sabia, com pasta de nozdeareca.

   O padre Conmee caminhou e, caminhando, sorriu pois pensou nos olhos gaiatos e no sotaque do padre Bernard Vaughan.

– Pilátus! Pur que não siguras a malta insandicida.

   Um homem reto, no entanto. Realmente era. E fazia realmente muito bem lá à sua maneira. Indubitavelmente. Ele amava a Irlanda, ele disse, e amava os irlandeses. De boa família também quem diria? Galeses, não eram?

   Ah, antes que ele esqueça. Aquela carta ao provincial.

   O padre Conmee parou três estudantezinhos na esquina da Mountjoy square. Sim: eles eram do Belvedere. Do primário. Arrá. E eram meninos bonzinhos na escola? Ah. Mas isso era muito bom. E qual era o nome dele? Jack Sohan. E o dele? Ger. Gallaher. E o outro rapazinho? O nome dele era Brunny Lynam. Ah, que nome mais bonito.

   O padre Conmee puxou do peito uma carta que deu ao senhorzinho Brunny Lynam e apontou para a caixacoluna na esquina da Fitzgibbon Street.

– Mas cuidado pra não acabar você mesmo dentro da caixa, rapazinho, ele disse.

   Os meninos seisolharam o padre Conmee e riram.

– Ah, padre.

– Bom, deixa só ver se você sabe postar uma carta, o padre Conmee disse.

   O senhorzinho Brunny Lynam atravessou a rua correndo e pôs a carta do padre Conmme para o provincial na boca da caixa vermelha de correio brilhante, o padre Conmee sorriu e acenou e sorriu e caminhou pelo lado leste da Mountjoy square.

   O senhor Denis J. Maginni, professor de dança &c., de cartola, casaca tijolo debruada de seda, gravata de lenço branca, calça justa lavanda, luvas canário e botas pontudas de verniz, caminhando com maneiras graves respeitosissimamente tomou o lado do meiofio ao passar por lady Maxwell na esquina do jardim de Dignam.

   Aquela ali não era a senhora M‘Guinness?

   A senhora M‘Guinness, solene, pratencanecida, fez uma reverência para o padre Conmee da calçada oposta ao longo da qual sorria. E o padre Conmee sorriu e cumprimentou. Como ela estava passando?

   Um belo talhe, o dela. Como Maria rainha da Escócia, algo assim. E pensar que era penhorista. Ora, ora! Um... como ele poderia dizer?... um garbo de rainha.

   O padre Conmee desceu a Great Charles Street e lançou um olhar para a igreja livre trancada a sua esquerda. O reverendo T. R. Green, B. A., fala (D. V.) hoje. O incumbência, era o apelido dele. Ele sentia a incumbência de dizer algumas palavras. Mas devemos ser caridosos. A invencível ignorância. Agiam segundo as suas luzes.

   O padre Conmee virou a esquina e caminhou pela North Circular Road. Era de se admirar que não houvesse uma linha de bonde em uma via comercial tão importante. Certamente, deveria haver.

   Um bando de estudantes mochilados atravessou vindo da Richmond Street. Ergueram todos bonés encardidos. O padre Conmee cumprimentou-os mais de uma vez benignamente. Meninos dos Irmãos Cristãos.

   O padre Conmee sentiu cheiro de incenso a sua direita enquanto andava. Igreja de São José, alameda Portland. Para mulheres idosas e virtuosas. O padre Conmee ergueu o chapéu para o Santo Sacramento. Virtuosas: mas vez por outra eram malumoradas também.

   Perto da Aldborough house o padre Conmee pensou naquele membro pródigo da nobreza. E agora era um escritório ou coisa assim.

   O padre Conmee pôs-se a andar pela North Strand Road e foi cumprimentado pelo senhor William Gallagher que estava postado à entrada de sua loja. O padre Conmee cumprimentou o senhor William Gallagher e percebeu os odores que vinham de mantas de toucinhos e amplos potes de manteiga. Passou pela tabacaria Grogan contra a qual se apoiavam as manchetes que contavam de uma catástrofe terrível em Nova Iorque. Na América essas coisas aconteciam o tempo todo. Gente infeliz, morrer desse jeito, despreparada. Ainda assim, um ato de perfeita contrição.

   O padre Conmee passou pelo pub de Daniel Bergin contra cuja janela dois homens sem trabalho matavam tempo. Eles o cumprimentaram e foram cumprimentados.

   O padre Conmee passou pelo estabelecimento funerário de H. J. O’Neill onde Corny Kelleher adia cifras no livrodiário enquanto mascava uma palhinha. Um guarda em sua ronda cumprimentou o padre Conmee e o padre Conmee cumprimentou o guarda. No Youkstetter's, o açougue de porcos, o padre Conmee observou chouriços de porco, brancos e negros e rubros, com esmero expostos enroscados em seus tubos.

Fundeada sob as árvores do Charleville Mall o padre Conmee viu uma barca de turfa, um cavalo de toa de cabeça pendente, um barqueiro com um chapéu de palha sujo sentado a meio convés, fumando e encarando um ramo de choupo sobre si. Era idílico: e o padre Conmee refletiu sobre a providência do Criador que fizera a turfa jazer nos charcos onde os homens pudessem escavar por trazê-la a cidade e vilarejo para fazer o fogo nas casas dos pobres.

   Na ponte Newcomen o reverendíssimo John Conmee, S. J., da igreja de São Francisco Xavier, upper Gardiner Street, subiu em um bonde sentido bairro.

   De um bonde sentido centro desceu o reverendo Nicholas Dudley, C. C., da igreja de Santa Ágata, north William Street, vindo para a ponte Newcomen.

   Na ponte Newcomen o padre Conmee subiu em um bonde sentido bairro pois lhe desagradava atravessar a pé o caminho churdo lá dos charcos.

   O padre Conmee sentou a um canto do bonde, um bilhete azul metade metido no olho de roliça luva de pelica, enquanto quatro xelins, uma moeda de seis pence e cinco de um pêni precipitaram-se de sua outra roliça palmenluvada para a bolsa. Passando pela igreja da hera ele refletiu sobre o fato de o inspetor que checava os bilhetes normalmente fazer sua visitinha quando já se tinha descuidadamente jogado fora o bilhete. A solenidade dos ocupantes do carro parecia ao padre Conmee excessiva para uma viagem tão curta e barata. O padre Conmee gostava de um decoro animado.

   Era um dia tranquilo. O cavalheiro de óculos à frente do padre Conmee acabara de explicar e olhava para baixo. Sua esposa, o padre Conmee supunha. Um bocejo minúsculo abriu a boca da esposa do cavalheiro de óculos. Ela ergueu o pequeno punho enluvado, bocejou sutílima, com tapatapinhas do pequeno punho enluvado sobre a boca aberta e sorriu minúscula, docemente.

   O padre Conmee percebia o perfume dela pelo carro. Percebeu também que o homem desajeitado do outro lado dela estava sentado na beira do banco.

   O padre Conmee no frontal do altar punha a hóstia com dificuldade na boca do velho desajeitado da cabeça trêmula.

   Na ponte Annesley o trem se deteve e, quando estava a ponto de partir, uma velha levantou repentina do banco para desembarcar. O motorneiro puxou a corda do sino para deter o carro para ela. Ela passou para fora com seu cesto e uma sacola de feira: e o padre Conmee viu o motorneiro ajudar a ela e a sacola e o cesto a descer: e o padre Conmee pensou que, como ela estava quase passando o limite da passagem de um pêni, ela era uma daquelas boas almas que tinham sempre que ouvir duas vezes Deus te abençoe, minha filha, que foram perdoadas, reza por mim. Mas elas tinham tantas preocupações na vida, tantos problemas, coitadinhas.

   Dos cartazes o senhor Eugene Stratton sorria amarelo com seus beiços de negro para o padre Conmee.

   O padre Conmee pensou nas almas dos negros e pardos e amarelos e em seu sermão sobre são Pedro Claver, S. J., e a missão africana e na propagação da fé e nos milhões de almas negras e pardas e amarelas que não tinham recebido o batismo da água quando seu último momento chegou como um ladrão no meio da noite. Aquele livro do jesuíta belga, Le nombre des élus, parecia ao padre Conmee um pleito razoável. Eram milhões de almas humanas criadas por Deus a Sua semelhança a quem a fé não tinha (D. V.) sido trazida. Mas eram almas de Deus criadas por Deus. Ao padre Conmee parecia uma pena que devessem ser todas perdidas, um desperdício, se é que se pode falar assim.

   Na parada da Howth Road o padre Conmee desembarcou, foi cumprimentado pelo motorneiro e o cumprimentou por sua vez.

   A Malahide Road estava calma. Ela agradava ao padre Conmee, rua e nome. Os sinos da alegria dobravam na feliz Malahide. Lord Talbot de Malahide, lorde almirante hereditário imediato de Malahide e dos mares circunstantes. Então veio o chamado das armas e ela foi virgem, esposa e viúva em um mesmo dia. Eram dias do velho mundo, tempos leais em terras jubilosas, tempos antigos no baronato.

   O padre Conmee, caminhando, pensou em seu livrinho Tempos antigos no baronato e no livro que poderia ser escrito sobre as casas jesuítas e em Mary Rochfort, filha de lorde Molesworth, primeira condessa de Belvedere.

   Uma senhora apática, não mais jovem, caminhava pela beira do lough Ennel, Mary, primeira condessa de Belvedere, apaticamente caminhando pela tarde, sem sobressaltar-se com o mergulho de uma lontra. Quem poderia saber a verdade? Não o ciumento lorde Belvedere e não o confessor dela se tinha ou não cometido o adultério integralmente, eiaculatio seminis inter vas naturale mulieris, com o irmão de seu marido? Ela confessaria pela metade se não tivesse pecado inteira, como fazem as mulheres. Só Deus sabia e ela e ele, o irmão de seu marido.

   O padre Conmee pensou naquela tiranizante incontinência, necessária contudo para a raça dos homens sobre a terra, e nos caminhos de Deus que não eram os nossos.

   Dom John Conmee caminhava e se movia por tempos d’antanho. Ele era misericordioso e honrado ali. Trazia na mente segredos confessos e sorria para sorridentes rostos nobres em uma saladestar lustrada com cera de abelhas, sancada de cachos cheios de frutas. E as mãos de uma noiva e de um noivo, nobre com nobre, foram empalmadas por Dom John Conmee.

   Era um dia encantador.

   O portão coberto de um campo mostrava ao padre Conmee fileiras de repolhos, que lhe faziam reverências com amplas folhas chãs. O céu lhe mostrava um rebanho de pequenas nuvens brancas descendo o vento lentas. Moutonner, os franceses diziam. Uma palavra familiar e justa.

   O padre Conmee, lendo seu ofício, observava um rebanho de nuvens mutáveis sobre Rathcoffey. Seus tornozelos de meiasfinas titilados pelos talos restantes do campo de Clongowes. Lá ele caminhara, lendo à tardinha, e ouvira os gritos das turmas dos meninos que brincavam, gritos jovens na calma do entardecer. Ele era seu reitor: era leve seu jugo.

   O padre Conmee tirou as luvas e sacou o breviário bordarrubro. Um marcador ebúrneo lhe disse qual página.

   Nonas. Ele devia ter lido isso antes do almoço. Mas a Senhora Maxwell tinha aparecido.

   O padre Conmee leu em segredo Pater e Ave e persignou-se. Deus in adiutorium.

   Caminhava lento e lia mudo as nonas, caminhando e lendo até chegar a Res em Beati immaculati: Principium verborum tuorum veritas: in eternum omnia iudicia justitiæ tuæ.

   Um rapaz afogueado surgiu de uma fenda em uma sebe e atrás dele veio uma moça com reverentes margaridas do campo na mão. O rapaz ergueu abrupto o boné: a moça abrupta curvou-se e com lenta atenção soltou da saia leve um graveto agarrado.

   O padre Conmee abençoou a ambos com gravidade e virou uma página delgada de seu breviário. Sin: Principes persecuti sunt me gratis: et a verbis tuis formidavit cor meum.

notas

nota i :: nota ii :: média

allan 8 :: 9 :: 8,5

ana 9 :: 10 :: 9,5

bruna 8 :: 8 :: 8

bruna e. 9 :: 9 :: 9

bruno 8 :: 8,5 :: 8,3

dafne 7,5 :: 8,5 :: 8 

diogo 8 :: 9 :: 8,5

elaine 8 :: 8 :: 8

elisa 10 :: 10 :: 10

flavia 9 :: 10 :: 9,5

franciele 8 :: 9 :: 8,5

gabriela 8,5 :: 10 :: 9,3

glaucia 9 :: 8,5 :: 8,8

jaime 4 :: 6 :: 5 final     2 :: média 3,5

juliane 7 :: 9 :: 8

larissa 8,5 :: 8 :: 8,3

luísa 9,5 :: 9 :: 9,3  

marcus 7,5 :: 7:: 7,3

marjure 8 :: 8

mirian 8:: 8 :: 8

nelma :: 6 :: 0 :: 3 rep

nathália 7,5 :: 7,5 :: 7,5

paula 10 :: 9 :: 9,5

sandro 7 :: 8 :: 7,5

taís 8 :: 7,5 :: 7,8

thiago 8 :: 7,5 :: 7,8

vanessa h. 8 :: 9 :: 8,5

willian 6 :: 8 :: 7 

Prova final dia 21. Mesma sala, mesmo horário. Tema: conceito centrais de Bakhtin, ler e trazer o fragmento do Ulysses que está mais abaixo: