Wallace e a ironia

Senhores, com milhares de perdães pela demora...

seguem os linquinhos:

Um é o movimento lento da Sinfonia Titã, a primeira do Mahler, que tem a brincadeirinha com Frère Jacques.

Outro, ainda Mahler, pra se ver como ele transitava bem, no entanto, entre a ironia e a confissão sincera

E um terceiro (todo o prêmio pra quem prestar atenção) pra mostrar, no fundo, um uso novamente irônico da mesma música

Um trecho LINDO de Infinite Jest, e talvez o melhor exemplo dessa cruzada pela sinceridade

E um número especial dos Cadernos de Não-Ficção, com um dossiê sobre o nosso homem.

E mais dois textos (meus: infelizmente ainda não há muita coisa sobre Wallace por aqui). Um sobre tristeza, e outro sobre ironia e sinceridade.

e o texto (em versão SEM revisão, feita a partir da transcrição do áudio do discurso de David Foster Wallace em 2005, e não a partir da versão revisada e tal que saiu em livro, e que é bem mais decente. Favor não divulgar.)

Transcrição do discurso de formatura de 2005, na Universidade Kenyon: 21 de maio de 2005

 

 

(Se alguém aí estiver com vontade de suar [tosse], eu diria para você ir em frente, porque eu certamente vou. Para falar a verdade eu vou [murmura enquanto ergue a beca e tira um lenço do bolso].) Saudações [“pais”?] e congratulações à turma de formandos de 2005 da Universidade Kenyon.

Lá estão dois peixinhos jovens nadando por aí quando por acaso encontram um peixe mais velho nadando na outra direção, que os cumprimenta com a cabeça e diz “Dia, meninos. Como é que está a água?” e os dois peixinhos nadam mais um pouco e então por fim um deles olha para o outro e diz “Mas o que diabos é água?”

Trata-se de uma premissa padrão dos discursos de formatura nos Estados Unidos, o emprego de estorinhas didáticas meio parabolentas. A coisa da estória no final se revela uma das melhores e menos bobajosas convenções do gênero, mas se vocês estão temendo que eu pretenda me apresentar aqui como o peixe mais velho e mais sábio que explica a vocês, jovens peixinhos, o que é a água, por favor não tenham medo. Eu não sou o peixe velho e sábio. O tema da estória é simplesmente o fato de que as realidades mais óbvias e importantes muitas vezes são as mais difíceis de vermos e comentarmos. Exposta como uma frase em português, assim, é claro que se trata apenas de uma platitude banal, mas o fato é que nas trincheiras cotidianas da existência adulta, as platitudes banais podem ter uma importância vital, ou ao menos é isso que eu pretendo sugerir a vocês nessa linda manhã seca.

É claro que a principal premissa de falas como essa é que eu deva falar sobre o significado da educação em ciências humanas que vocês receberam, tentar explicar porque o grau que vocês estão prestes a receber tem um efetivo valor humano ao invés de um simples valor de mercado. Então vamos falar sobre o clichê que é de longe o mais pressente no gênero dos discursos de formatura, que é a idéia de que uma educação nas ciências humanas não trata tanto de encher suas cabeças com conhecimento quanto de ensinar vocês a pensar. Se vocês são como eu quando estudante, vocês nunca gostaram de ouvir isso e tendem a se sentir um pouco ofendidos pela suposição de que precisassem que alguém lhes ensinasse a pensar, já que o mero fato de que vocês conseguiram entrar numa universidade tão boa como essa prova que vocês já sabem pensar. Mas eu vou propor a vocês que o clichê das ciências humanas acaba não sendo nada ofensivo, porque a educação realmente significativa a respeito do pensamento que nós supostamente recebemos em lugares como este não trata realmente da capacidade de pensar, mas na verdade da escolha de sobre que pensar. Se sua total liberdade de escolha a respeito de sobre o que pensar parece óbvia demais para justificar a perda de tempo da discussão, eu pediria que você pensasse em peixes e água, e colocasse o seu ceticismo sobre o valor do totalmente óbvio entre parênteses apenas por alguns minutos.

E aqui vai outra estorinha didática. Lá estão dois carinhas sentados juntos em um bar no distante interior do Alasca. Um deles é religioso, o outro é ateu, e os dois estão discutindo sobre a existência de Deus com aquela intensidade especial que vem depois da quarta cerveja. E o ateu diz: “Olha só, não é que não tenha razões de verdade para não acreditar em Deus. Não é que eu não tenha sentido tudo isso de Deus e de orações. Ainda no mês passado eu fiquei preso longe do acampamento em uma nevasca horrorosa e estava totalmente perdido e não enxergava um palmo diante do nariz e estava 40º. negativos e aí eu tentei: caí de joelhos na neve e berrei ‘Ah, Deus, se existe Deus, eu estou perdido nessa nevasca e vou morrer se não me ajudardes.’” E agora, no bar, o cara religioso olha para o ateu todo intrigado. “Bom, então agora você tem que acreditar,” ele diz, “afinal de contas você está aqui, vivo.” O ateu simplesmente revira os olhos. “Não, meu, foi só que uns esquimós por acaso estavam passando por ali e me mostraram o caminho de volta para o acampamento.”

É fácil passar essa estória por uma espécie de análise padrão das ciências humanas: a mesmíssima experiência pode significar duas coisas completamente diferentes para duas pessoas diferentes, dados os diferentes conjuntos de crenças e as diferentes formas de construir o significado a partir da experiência daquelas duas pessoas. Como nós valorizamos a tolerância e a diversidade de crenças, em lugar algum de nossa análise de ciências humanas nós pretendemos supor que a intepretação de um dos caras seja verdadeira e a do outro, falsa ou má. O que fica muito bem, a não ser pelo fato de que nós acabamos também sem jamais falar sobre de onde vêm esses padrões e essas crenças. Ou seja, de onde vêm eles dentro desses caras. Como se a mais básica orientação de uma pessoa em sua relação com o mundo, e o sentido dessa experiência fossem de alguma maneira inaros, como a altura ou o tamanho dos sapatos que ela vai usar; ou fossem automaticamente absorvidos da cultura, como a linguagem. Como se a forma de construirmos o sentido não fosse uma questão de escolha pessoa, intencional. E, mais, há toda a questão da arrogância. O sujeito não-religioso estão tão integralmente certo de sua desconsideração da possibilidade de que os esquimós passando por ali tivessem qualquer coisa a ver com sua oração pedindo socorro. É verdade, há inúmeras pessoas religiosas que parecem também arrogantes e seguras de suas interpretações. Elas provavelmente causam ainda mais repulsa que os ateus, ao menos para a maior parte de nós. Mas o problema do dogmatista religioso é exatamente o mesmo do descrente da estória: certeza cega, uma mente fechada que equivale a um encarceramento tão absoluto que o prisioneiro sequer percebe que está preso.

O que eu quero dizer aqui é que eu acho que isso é parte do que a expressão ensinar a pensar realmente significa. Ser um pouco menos arrogante. Ter só um pouquinho de consciência crítica sobre mim mês e sobre as minhas certezas. Porque uma percentagem imensa das coisas de que eu tendo a ter absoluta certeza, no final, se revela totalmente equivocada e ilusória. Eu aprendi isso do jeito mais difícil, como predigo que vocês, formandos, também vão aprender.

Aqui vai só um exemplo do completo equívoco de uma coisa de que eu tendo a ter automática certeza: tudo na minha experiência imediata sustenta minha profunda crença de que sou o centro absoluto do universo; a pessoa mais real, mais vívida e mais importante que existe no mundo. Nós raramente pensamos nesse tipo de auto-centramento natural, básico, porque ele é tão repulsivo, socialmente. Mas ele é basicamente o mesmo para todos nós. É a nossa configuração de fábrica, definida nas nossas placas-mães quando nascemos. Pense um pouco: não há uma só experiência que você tenha tido e em que você não seja o centro absoluto. O mundo, como você o vivencia, está ali na sua frente, ou atrás de você, ou à sua esquerda ou direita, na sua TV ou no seu monitor. E assim por diante. Os pensamentos e as sensações das outras pessoas têm de ser de alguma maneira comunicados a você, mas os seus próprios são tão imediatos, urgentes, reais...

Por favor não fiquem com medo de que eu esteja me preparando para passar um sermão sobre compaixão ou altruísmo ou as assim chamadas ‘virtudes’. Não se trata de virtude. Trata-se da minha escolha de fazer o esforço de, de alguma maneira, alterar e me libertar da minha configuração de fábrica, natura, que é ser profunda e literalmente auto-centrado e de ver e interpretar tudo por essa lente do ego. As pessoas que conseguem ajustar sua configuração natural dessa maneira muitas vezes são descritas como sendo “bem ajustadas”, o que eu lhes sugiro que não é um termo acidental.

Dado o cenário acadêmico triunfante daqui, uma questão óbvia é quanto desse esforço de ajustar nossa configuração acadêmica de fato envolve conhecimento ou intelecto. Essa questão é bem complicada. Provavelmente a coisa mais perigosa sobre uma educação acadêmica (ao menos no meu caso) é que ela libera minha tendência a intelectualizar as coisas excessivamente, a me perder em discussões abstratas dentro de minha cabeça, ao invés de simplesmente prestar atenção no que está acontecendo bem na minha frente, prestar atenção no que está acontecendo dentro de mim.

Como eu tenho certeza que vocês já sabem, a essa altura, é extremamente difícil se manter alerta e atento, ao invés de se deixar hipnotizar pelo monólogo constante dentro da sua própria cabeça (isso pode estar acontecendo nesse exato momento). Vinte anos depois da minha própria formatura, eu gradualmente vim a compreender que o clichê das ciências humanas sobre “ensinar a pensar” é na verdade uma abreviação de uma idéia muito mais profunda e mais séria: aprender como pensar significa na verdade aprender como exercer algum controle sobre como e o que você pensa. Significa estar consciente e alerta o bastante para escolher a que prestar atenção e para escolher como você constrói os significados a partir da experiência. Porque se você não consegue exercer esse tipo de escolha na vida adulta, você vai estar completamente travado. Pense no velho clichê que diz que a mente é um excelente criado mas um mestre terrível.

Esse, como muitos clichês, superficialmente tão sem-graça e tão imbecis, na verdade exprime uma grande verdade, e uma verdade terrível. Não é em nenhuma medida um coincidência que os adultos que comete suicídio com armas de fogo quase sempre atiram na: cabeça. Eles matam o mestre terrível. E a verdade é que a maioria desses suicidas na verdade está morta muito antes de puxar o gatilho.

E eu proponho que é disso que deveria tratar o verdadeiro valor, em embromações, da educação em ciências humanas que vocês receberam. Como evitar passar pela sua vida adulta confortável, próspera e respeitável, morto, inconsciente, escravo de sua cabeça de sua configuração natural de fábrica de se ver única, completa, imperialmente só dia após dia. Isso pode parecer hiperbólico, ou uma bobajada sem sentido. Vamos às coisas concretas. A verdade nua e crua é que vocês, formandos, ainda não tem sequer idéia do que ‘dia após dia’ realmente quer dizer. Por acaso existem porções inteiras e grandes da vida adulta dos americanos de que ninguém fala nos discursos de formatura. Uma dessa partes envolve tédio, rotina e frustrações mesquinhas. Os pais e outras pessoas mais velhas aqui vão saber muito bem de que eu estou falando.

Para dar um exemplo, digamos que seja um dia adulto normal e você acorda de manhã, vai para o seu emprego desafiador, elitista, universitário e trabalha duro por oito ou dez horas e no fim do dia você está cansado e um pouco tenso e tudo que você quer é ir para casa e comer bem e quem sabe relaxar por uma hora e daí cair na cama cedo porque, claro, você precisa acordar no dia seguinte e fazer tudo de novo. Mas aí você lembra que não tem comida em casa. Você não teve tempo de ir ao mercado essa semana por causa do seu emprego desafiador, então agora depois do trabalho você tem de entrar no carro e dirigir até o supermercado. É fim de expediente e o transito há de estar.... muito ruim. Então chegar ao mercado demora muito mais do que deveria e quando você finalmente chega lá, o mercado está muito cheio, porque é o horário em que todas as outras pessoas que têm empregos também tentam enfiar um tempo para as compsar. E a loja tem uma iluminação odiosa e está mergulhada em música ambiente que destrói qualquer alma ou em música pop industrializada e é basicamente o último lugar em que você gostaria de estar, mas você não pode simplesmente entrar e sair; você tem de caminhar por todas as confusas gôndolas hiper-iluminadas do mercado para encontrar as coisas que quer e tem de manobrar o seu carrinho vagabundo através de todas essas outras pessoas cansadas e apressadas, com seus carrinhos (etc etc, cortando pedaços porque se trata de uma cerimônia longa) e finalmente você pega todas as compras para a sua janta, só que agora você percebe que não há caixas abertos em número suficiente, mesmo sendo o horário de pico do fim do dia. Então a fila do caixa é incrivelmente longa, o que é estúpido e irritante. Mas você não pode descontar a sua frustração na moça assoberbada que opera o caixa, que é explorada em um emprego cujos tédio e falta de sentido diários ultrapassam a imaginação de qualquer um de nós em uma universidade de prestígio.

Mas, enfim, você finalmente chega à frente da fila e paga pela sua comida e lhe dizem para ter “um bom dia” com uma voz que é absolutamente a voz da morte. Então você tem de levar as suas sacolas plásticas fininhas, amedrontadoras, cheias de compras no seu carrinho que tem uma rodinha solta que puxa insanamente para a esquerda, passando por todo o estacionamento lotado, ondulado e sujo e aí você tem de dirigir até a sua casa no trânsito lento, pesado, carregado de peruas, da hora do rush, etc etc...

Todos aqui já fizeram isso, é claro. Mas isso ainda não fez parte da rotina efetiva de suas vidas como estudantes, dia após semana após mês após ano.

Mas vai fazer. Isso e muitas outras rotinas pavorosas, incômodas, aparentemente sem sentido, anda. Mas não é disso que eu quero falar. Eu quero falar que é exatamente em bobagens mesquinhas e frustrantes como essas que vai entrar o esforço de escolha. Porque os engarrafamentos e os corredores lotados do mercado e as longas filas do caixa me dão tempo para pensar, e se eu não tomo uma decisão consciente sobre como pensar e em que prestar atenção, vou ficar puto e infeliz toda vez que tiver de fazer compras. Porque a minha configuração natural de fábrica é a certeza de que situações como essa na verdade dizem respeito a mim. Sobre a minha fome e o meu cansaço e o meu desejo de simplesmente ir para casa e vai ficar parecendo claramente que todas as outras pessoas simplesmente estão no meu caminho. E quem são essas pessoas no meu caminho? E veja como a maioria delas é repulsiva, e como elas parecem estúpidas e bovinas e de olhos mortos e não-humanas na fila do caixa, ou como é irritante e grosseiro que as pessoas fiquem falando alto em seus celulares no meio da fila. E veja como isso é profunda e pessoalmente injusto.

Ou, claro, se estou em uma forma mais consciente e cienciashumânicas da minha configuração de fábrica, posso passar meu tempo no trânsito do fim do dia me sentindo enojado com todas aquelas peruas e caminhonetes e utilitários imensos, imbecis, que trancam as ruas, queimando seus tanques imensos, destrutivos e egoístas de gasolina e posso me deter no fato de que os adesivos patrióticos ou religiosos parecem estar quase sempre nos carros maiores e mais nojentamente egoístas, conduzidos pelos motoristas mais feios [reagindo aqui a grandes aplausos] (esse, no entanto, é um exemplo de como não pensar), mais sem consideração e mais agressivos. E posso pensar sobre como os filhos dos nossos filhos vão nos desprezar por gastar todo o combustível do futuro e provavelmente ferrar com o clima e sobre como somos todos mimados, estúpidos e egoístas e nojentos, e como a sociedade de consumo moderna simplesmente é uma porcaria, e assim por diante.

Deu para entender.

Se voce escolhe pensar assim em um mercardo ou na rua, ótimo. Muitos de nós escolhem. Mas o fato é que pensar assim tende a ser tão fácil e automático que nem sequer precisa ser uma escolha. É a minha configuração natural de fábrica. É a maneira automática que tenho de vivenciar as partes tediosas, frustrantes e cheias de gente da vida adulta quando estou funcionando baseado na crença automática e inconsciente de que sou o centro do mundo e de que as minhas necessidades e os meus sentimentos imediatos são o que deveria determinar as prioridades do mundo.

O fato é que, claro, existem formas totalmente diferentes de pensar sobre esses tipos de situações. Nesse trânsito, todos esses carros parados em ponto-morto na minha frente, não é impossível que algumas dessas pessoas nas caminhonetes tenham sofrido horrendos acidentes de automóvel no passado e agora achem tão aterradora a idéia de dirigir que seus analistas quase ordenaram que comprassem uma caminhonete imensa e pesada para que pudessem sentir segurança para dirigir. Ou que a perua que acabou de me podar talvez tenha ao volante um pai cujo filho está ferido ou doente no assento ao seu lado, e ele está tentando levar essa criança ao hospital e está com uma pressa maior e mais legítima que a minha: na verdade sou eu que estou no caminho dele.

Ou eu posso escolher me forçar a considerar a probabilidade de que todas as outras pessoas na fila do supermercado estejam exatamente tão entediadas e frustradas quanto eu, e que algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas mais duras, mas tediosas e dolorosas que a minha.

De novo, por favor não pensem que eu estou lhes dando conselhos morais, ou que estou dizendo que vocês devem pensar desse jeito, ou que qualquer outra pessoa espere que vocês simples e automaticamente ajam assim. Porque e difícil. Custa vontade e aplicação e, se você é como eu, em alguns dias você não vai conseguir fazer, ou pura e simplesmente não vai querer.

Mas na maioria dos dias, se você está consciente o suficiente para se dar uma escolha, você pode escolher olhar de forma diferente para essa senhora gorda, de olhos mortos e cheia de maquiagem que acaba de gritar com a sua filha na fila do caixa. Talvez ela não seja assim normalmente. Talvez ela tenha passado três noites em claro segurando a mão de um marido que está morrendo de câncer ósseo. Ou talvez essa mesma senhora seja a funcionária mal-paga no departamento de trânsito que ainda ontem ajudou a minha mulher a resolver um problema burocrático horroroso e irritante com um pequeno gesto de gentileza administrativa. É claro que nada disso é provável, mas também não é impossível. Simplesmente depende de o que você quer considerar. Se você automaticamente tem certeza de que sabe qual é a realidade, e se você está funcionando na sua configuração de fábrica, então você, como eu, provavelmente não vai considerar as possibilidades que não sejam irritantes e infelizes. Mas se você realmente aprender a prestar a tenção, então você vai saber que existem outras opções. De fato vai estar em seu poder vivenciar uma situação típica de inferno de consumo, lotada, quente, lenta como algo não apenas significativo mas sagrado, inflamado pela mesma força que fez as estrelas: amor, camaradagem, a mística união de todas as coisas, bem no fundo.

Não que essas coisas místicas sejam necessariamente verdadeiras. A única coisa que é Verdadeira com V maiúsculo é que é você quem decide como vai tentar vê-las.

Essa eu proponho que seja a liberdade de uma educação de verdade, de aprender como ser bem-ajustado. Você pode decidir conscientemente o que tem significado e o que não tem. Você pode decidir o que adorar.

Porque olha só outra coisa que é estranha mas verdadeira: nas trincheiras cotidianas da vida adulta, não existe, de fato, algo como o ateísmo. Não existe a idéia de não adorar. Todo mundo adora. A única escolha que temos é o que adorer. E o motivo que leva a talvez escolher alguma espécie de coisa do tipo espiritual para adorar (seja JC ou Alá, seja YHWH ou a Deusa-Mãe da Wicca, ou as Quatro Nobres Verdades, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos) é que basicamente todas as outras coisas que você adora vão te comer vivo. Se você adora o dinheiro e as coisas, se é nelas que você encontra o verdadeiro sentido da vida, então você nunca vai ter o bastante, nunca vai achar que tem o bastante. É a verdade. Adore o seu corpo e a sua beleza e os seus encantos sexuais e você sempre vai se sentir feio. E quanto o tempo e a idade começarem a aparecer você vai morrer um milhão de vezes antes de finalmente chorarem por você. Em um nível, nós todos já sabemos dessas coisas. Elas foram codificadas como mitos, provérbios, clichês, epigramas,parábolas; o esqueleto de toda estória realmente boa. O truque da coisa toda é manter a verdade bem na frente dos olhos na consciência cotidiana.

Adore o poder e você vai acabar se sentindo fraco e amedrontado e vai precisar cada vez de mais poder sobre os outros para amortecer-se diante do seu próprio medo. Adore o seu intelecto, ser considerado inteligente, e você vai acabar se sentindo estúpido, uma fraude, sempre à beira de ser revelada. Mas a coisa insidiosa sobre essas formas de adoração é que elas não são más ou pecaminosas, é que sejam inconscientes. São configurações de fábrica.

Elas são o tipo de adoração em que você simplesmente se deixa, gradualmente, cair, dia a dia, ficando cada vez mais seletivo quanto ao que vê e a como mede o valor das coisas sem jamais ter plena consciência de que é isso que você está fazendo.

E o assim chamado mundo real não vai desencorajar você de funcionar nas suas configurações de fábrica, porque o assim chamado mundo real dos homens e do dinheiro e do poder segue feliz cantarolando em uma vala de medo e raiva e frustração e desejo e adoração do ego. A nossa cultura atual domou essas forças de formas que geraram uma riqueza, um conforto e uma liberdade pessoal extraordinárias. A liberdade que temos todos, de sermos senhores de nossos minúsculos reinos, do tamanho de uma caveira, sós no centro da criação. Essa espécie de liberdade tem muito a seu favor. Mas é claro que existem muitos tipos diferentes de liberdade, e sobre o tipo que é mais precioso você não vai ouvir muito no grande mundo externo de carências e sucessos e exibição. O tipo de liberdade que é realmente importante envolve atenção e consciência e disciplina e ser capaz de verdadeiramente se importar com as outras pessoas e de se sacrificar por elas repetidamente em uma pletora de formas pequenas e nada atraentes, todo dia.

Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ser educado e entender como pensa. A alternativa é a inconsciência, a configuração de fábrica, o mundo-cão, a constante sensação incomoda de ter tido, e perdido, algo infinito.

Sei que essas coisas provavelmente não soam divertidas e leves ou grandiosamente inspiradoras como se espera que soe um discurso de formatura. O que elas são, até onde eu possa ver, é a verdade com V maiúsculo, com um monte de delicadezas retóricas extirpadas. Vocês, é claro, têm a liberdad de achar delas o que bem quiserem. Mas por favor não as desconsiderem simplesmente como algum sermão de uma pedagoga de dedo em riste. Nada disso, na verdade, trata de moralidade ou religião ou dogmas ou grandes questões elegantes sobre a vida depois da morte.

A verdade com V maiúsculo trata da vida ANTES da morte.

Ela trata do verdadeiro valor de uma educação de verdade, que quase não tem nada que ver com conhecimento e tem tudo a ver com a simples consciência; consciência do que é tão real e essencial, está tão bem escondido, plenamente exposto, em tudo à nossa volta, o tempo todo, que temos de ficar nos lembrando sem parar:

“Isso é água.”

“Isso é água.”

É inimaginavelmente difícil fazer isso, permanecer consciente e vivo no mundo adulto dia após dia. O que significa que ainda outro grande clichê se revela verdadeiro: a sua educação realmente é o trabalho de toda uma vida. E ela começa agora.

Eu lhes desejo bem mais que boa sorte.